Todos os tratados internacionais que versem sobre direitos humanos, firmados e ratificados pelo Brasil, trazem normas que podem e devem ser utilizadas para incrementar a proteção e a promoção dos direitos de crianças e de adolescentes. Assim preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ao dizer em seu art. 3°: A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.
O entendimento é reforçado pelo disposto na Constituição Federal, art. 5°, § 2°: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes (...) dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Destarte, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU (Organização das Nações Unidas), promulgada em 1948, garante o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal a todo ser humano (artigo III). O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, da mesma forma, garante o direito à vida, dizendo que ele é inerente à pessoa humana; que deve ser protegido pela lei e que ninguém pode dele ser arbitrariamente privado.
O direito à vida também é previsto pela Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), de 1969, em seu artigo 4°, item 1, em termos muito semelhantes aos do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, enunciados no parágrafo anterior.
No que tange à proteção especial à criança e ao adolescente, deve ser dito que ela remonta ao texto da Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança, de 1924; passa pelo construído da Declaração dos Direitos da Criança, de 1959; e pelas disposições dos Pactos Internacionais dos Direitos Civis e Políticos (artigo 24, item 1) e dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (artigo 10, item 3), ambos de 1966; tem reconhecimento na Convenção Americana dos Direitos Humanos (artigo 19); de igual maneira, em seu Protocolo Adicional em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (artigo 16), o qual dispõe inclusive que a criança tem o direito de crescer, ou seja, de se desenvolver plenamente[1]; e culmina com a Convenção dos Direitos da Criança, de 1989.
Essa, por sua vez, traz a seguinte disposição acerca do direito à vida:
Artigo 6
1. Os Estados Partes reconhecem que toda criança[2] tem o direito inerente à vida.
2. Os Estados Partes assegurarão ao máximo a sobrevivência e o desenvolvimento da criança.
Em 2003[3], o Governo brasileiro, em cumprimento ao artigo 44 da Convenção, encaminhou relatório consolidado ao Comitê para os Direitos da Criança da ONU, a fim de que este examinasse os progressos realizados pelo país no cumprimento das obrigações contraídas. O documento[4] dizia que
Em relação especificamente à vida e à sobrevivência, o Estatuto dispõe, em seu artigo 7º, que “a criança e o adolescente têm direito à proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência".
A plena efetivação desses direitos encontra ainda sérios obstáculos na realidade brasileira. A despeito da mudança cultural que vem ocorrendo, no sentido de focalizar a criança e o adolescente como seres em desenvolvimento e sujeitos de direito, bem como de uma legislação avançada, voltada para sua proteção e do muito que vem sendo feito pelo Governo e pela sociedade, o cumprimento efetivo desse princípio permanece ainda longe de ser totalmente alcançado.
As condições de vida de grande número de crianças e adolescentes são marcadas pela pobreza, pelas dificuldades de acesso e deficiências na qualidade dos serviços públicos, pelo trabalho precoce e pela exposição a situações de violência.
O relatório faz referência ao Estatuto da Criança e do Adolescente que, assim como a Constituição da República (art. 227), está em perfeita concordância com o texto da Convenção dos Direitos da Criança (CDC), no que se refere ao direito à vida e a todos os demais direitos de crianças e adolescentes. Reconhece, no entanto, a enorme distância entre normatização e efetividade da mesma. Os relatórios alternativos elaborados pela sociedade organizada apontam o problema do grande número de homicídios cometidos contra adolescentes no Brasil[5].
Como resposta, o Comitê recomendou ao país
priorizar medidas necessárias para impedir este tipo de crime, investigar cada um dos assassinatos, responsabilizar os criminosos e fornecer o apoio adequado às famílias das vítimas. O Comitê solicitou ainda que o governo brasileiro informe, em seu próximo relatório à ONU, o número de crimes deste tipo praticados contra crianças e adolescentes e denunciados às autoridades competentes, a quantidade que resultou em sentença e qual a natureza desta[6].
Cabe ressaltar que o sistema de proteção internacional dos direitos humanos possui mecanismos para incentivar e exigir o cumprimento por parte dos Estados das normas constantes dos tratados aos quais livremente aderiram. No caso do sistema especial de proteção dos direitos das crianças - representado pela CDC -, a única medida de controle do cumprimento do tratado é a obrigação de apresentar relatórios periódicos ao Comitê para os Direitos da Criança, o qual poderá fazer sugestões e recomendações. O peso político dessas recomendações deve, portanto, ser bem explorado pelas organizações da sociedade que realizam o monitoramento das ações estatais.
De igual forma, pode-se apelar ao sistema regional interamericano de proteção dos direitos humanos, consubstanciado no Pacto de San José da Costa Rica. Esse documento prevê outras medidas de exigibilidade de seu conteúdo, quais sejam a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana[7]. A Comissão recebe petições de qualquer pessoa ou grupos de pessoas ou de entidades não governamentais, que com tenham denúncias ou queixas de violação da Convenção por um Estado-parte (artigo 44). Após analisar o caso e recomendar providências ao Estado-parte violador, em não sendo cumpridas, pode encaminhar a questão para a Corte Interamericana. Essa recebe reclamações oriundas somente da Comissão ou diretamente dos Estados-partes (artigo 61). A sentença condenatória da Corte corresponde a título executivo judicial contra o Estado onde ocorreu a violação de direito (artigo 68, 2).
Em que pesem as dificuldades, segundo especialistas, são boas as perspectivas de efetivação das normas de direito internacional.
(Trecho adaptado de artigo intitulado "Homicídios contra adolescentes e sistema internacional de proteção dos direitos humanos: a problemática iguaçuense", de autoria de Thiago Borges Lied e apresentado no VI Jurisciência – Mostra Jurídica da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) -, realizado em Foz do Iguaçu, entre 6 e 8 de outubro de 2010)
[1] O direito ao desenvolvimento é mais bem explicitado na Declaração do Direito ao Desenvolvimento, de 1986, da ONU. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/spovos/lex170a.htm>. Acesso em: 23 ago 2010.
[2] Criança para a Convenção é todo o indivíduo com menos de 18 anos (artigo 1).
[3] O último relatório foi entregue pelo governo brasileiro em setembro de 2015. Confira também o relatório alternativo apresentado por entidades e movimentos sociais de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes: http://www.anced.org.br/wp-content/uploads/2014/05/Relat%C3%B3rio-Alternativo-CDC-2004-2012.pdf.
[4] Disponível em: <http://www.andi.org.br/informes/Relatorio_DCA.pdf>. Acesso em: 10 ago 2010.
[5] Ver II Relatório Alternativo sobre os Direitos da Criança, produzido pela ANCED – Associação Nacional dos Centros de Defesa das Crianças e dos Adolescentes. Disponível em: <http://www.anced.org.br.. Acesso em 23 ago 2010.
[6] Ver notícia “ONU apresenta recomendações para o Brasil cumprir os direitos das crianças e adolescentes”. Disponível em: <http://www.andi.org.br/noticias/templates/template_dca.asp?articleid=5142&zoneid=257>. Acesso em: 23 ago 2010.
[7] Para mais detalhes, ver PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 85-118.
Extraído do Blog Advocacia em Direitos Humanos.
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