segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Função social do advogado

José Geraldo de Sousa Júnior

Nenhum discurso corrente, mesmo aqueles que ainda se movem pelas sugestões do idealismo de que se envolve o papel do advogado, recusa a aceitação do princípio fundamental da advocacia: o de que ela se constitui no desempenho de uma representação pública, caracterizando-se como função social. Por isso, tem razão Ruy de Azevedo Sodré, ao afirmar ser a função do advogado, não apenas um múnus público, “mas verdadeira função social, muito mais construtiva do que o conceito de função pública no velho estado de direito”.
É que, não sendo a advocacia somente uma profissão, a prática do advogado, como função social, insere a sua ação, de nítido sentido político, no conjunto das lutas sociais que articulam toda a sociedade.
Somos, antes de tudo, “Advogados do Brasil”. Recebemos, por isso, um mandato expresso da sociedade, reafirmando com nosso desempenho o compromisso que Raymundo Faoro assinalava:
“Os advogados brasileiros estruturam uma consciência ativa, atualizando o mandato de histórica missão, com a unidade granítica da mais numerosa das classes brasileiras. Não há mais entre nós consciência disponível, pronta às transigências, às seduções do poder, cativa da ótica captadora. Nosso contingente de homens e ideias está, ainda uma vez mais e sempre, a serviço do Brasil, na vanguarda.”
Desse modo, para situar o problema dos direitos e deveres do advogado, não basta pormenorizar explicações sobre o elenco previsto nos artigos 87 e 88, da Lei n° 4.215, de 27.04.63. Se é certo, como afirma Ruy de Azevedo Sodré, não se poder, “em verdade, exercer uma profissão, desconhecendo-lhe os deveres, as regras de conduta, as prerrogativas”, não é menos verdade que numa perspectiva que aponta para o sentido político da ação do advogado, o elenco de direitos e deveres enumerados no Estatuto para fundamentar a ética e a dignidade da profissão é apenas enunciativo; a ação social do advogado, inserta no conjunto das lutas sociais por novas conquistas democráticas, amplia, permanentemente, o rol desses direitos e deveres.
Portanto, o que se requer é dar relevo ao dever que articula e esclarece todos os demais que o Estatuto concretiza, para, em seguida, esclarecer o direito que lhe completa o significado.
Dispõe o art. 87, I, do Estatuto da Ordem, constitui dever do advogado:
“Defender a ordem jurídica e a Constituição da República, pugnar pela boa aplicação das Leis e a rápida administração da Justiça, e contribuir para o aperfeiçoamento das instituições jurídicas.”
Não é possível atribuir sentido a uma prática de mundo se o projeto de engajamento em que nos inserimos não for capaz de colocar as opções teóricas que esclareçam nossa própria ação. Vivemos uma conjuntura de lutas sociais e de crítica teórica. O que ela nos sugere é uma contribuição voltada para a construção de um saber crítico que esclareça a nossa práxis, enquanto comprometida com a análise da estrutura social, tendo por objeto a sua transformação racional. A etapa corrente pede contexto alternativo. Para sua criação, devemos, enquanto sujeitos investidos de função social, reconhecer o caráter operativo de nossos conhecimentos, aceitando totalmente as conseqüências políticas que decorram da análise e da compreensão dos mecanismos e das forças que regulam o funcionamento da sociedade e que orientam a direção do progresso. Não podemos, pois, admitir opções mesmo teóricas, que, isoladas da práxis, resultem em mera interpretação, a serviço da aceitação do mundo. Nosso compromisso é com a sua transformação.
Essa reflexão nos coloca, desde logo, diante da avaliação da ordem jurídica estabelecida, das leis vigentes e do verdadeiro sentido de nossa contribuição para o aperfeiçoamento das instituições jurídicas.
É oportuno, por essa razão, retomar, do modo como foi refocalizada atrás, a noção de “velho estado de direito”. Na acepção há pouco assinalada, o que se tem em vista é demarcar a etapa de superações necessárias, identificadas no individualismo que a caracteriza. A etapa corrente, ao contrário, acentua a exigência de novas concepções de Justiça capazes de assegurar, através do exercício democrático, a criação permanente de direitos igualmente novos, enquanto reivindica, simultaneamente, uma nova concepção de função pública, que envolve a prática social do advogado, como sujeito co-participante do processo de reinstituição contínua da sociedade.
Aliás, a denúncia do esgotamento da fórmula individualista já fora proclamada, entre nós, com intuição humanista, por João Mangabeira. Na sua “Oração do Paraninfo”, para os novos advogados, em 1944, revelou o grande tribuno, com precisão, a representação formal do enunciado de Justiça, contida no “dar a cada um o que é seu”.
Dizia:
“Aplicada em toda a sua inteireza, a velha norma é o símbolo da descaridade, num mundo de espoliadores e espoliados. Porque se a justiça consiste em dar a cada um o que é seu, dê-se ao pobre a pobreza, ao miserável a miséria e ao desgraçado a desgraça, que isso é que é deles. Nem era senão por isso que ao escravo se dava a escravidão, que era o seu, no sistema de produção em que aquela fórmula se criou.”
Ora, nem mesmo o gênio uniformiza as suas antecipações, se, na produção de suas ideias, conforma as relações do sujeito social ao sentido de aceitação do mundo nelas mesmas postas. A genialidade de Aristóteles, ligada à interpretação de seu mundo, não logrou elevar para fora do lugar e do tempo a sua classe, a explicação de uma divisão entre os homens segundo a natureza, de tal modo que para os escravos pudesse o senhor justificar a sua servidão como útil e justa.
Entretanto, o próprio João Mangabeira focaliza na história dois princípios, que inscritos na prática de mundo das comunidades cristãs primitivas (Atos 4, 35 e 2; Tessalonicenses 3, 10), se prestam para conteúdo da máxima de Justiça que os novos tempos exigem e que ab-rogam a velha forma:
“A regra da justiça deve ser: a cada qual segundo o seu trabalho, como resulta da sentença de São Paulo na carta aos Tessalonicenses, enquanto não se atinge o princípio de ‘a cada um segundo a sua necessidade’.”
Eis uma máxima que reconduz o Direito à posição de dignidade da qual o positivismo o exilou, para poder prestar como justificação de interesses convenientes culto à ordem vigente, independente de sua legitimidade. O Direito não se confunde inteiramente com a lei, se esta é instrumento circunstancial de qualquer paranóico, feito legislador, a exemplo de tantas tiranias que a História registra. O Direito, como corolário dessa regra de justiça, se apresenta “como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais”, constituindo-se, conforme Roberto Lyra Filho, “processo, dentro do processo histórico”, para atualização da “Justiça real resultante da criação de uma sociedade em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem”. O Direito, assim, apreendido no campo das relações contraditórias da sociedade, permite perceber as contradições entre a lei e a justiça e abrir, como assinala Marilena Chauí, “a consciência tanto quanto prática para a superação dessas contradições”. “Isto significa – diz ela – abrir o Direito para a História e, nessa ação, para a política transformadora.”
Eis um sentido para o 4° mandamento do Decálogo de Eduardo Couture que recomenda ser dever do advogado lutar pelo Direito, porém, encontrando o Direito em conflito com a Justiça, lutar pela Justiça.
O dever fundamental do advogado, cuja compreensão esclarece e orienta todos os seus direitos, é defender a ordem jurídica que expresse a resultante da Justiça real, pressuposto de sua legitimidade.
Qual o direito fundamental que esse dever concretiza em contraforte?
O Estatuto do Advogado isenta o exercício da advocacia contra a literal disposição de lei, das transgressões disciplinares, se ele se realiza como direito de assim proceder, fundado no reconhecimento da injustiça da lei.
Com efeito, estabelece o art. 103 VII, da Lei n° 4.215/63:
“Art. 103. Constitui infração disciplinar:
......................................................
VII – advogar contra literal disposição de lei, presumida a boa-fé e o direito de fazê-lo com fundamento na inconstitucionalidade, na injustiça da lei ou em pronunciamento judicial anterior”;
As mais recentes Conferências da Ordem dos Advogados do Brasil têm reafirmado esses princípios. A “Carta de Manaus”, na VIII Conferência reiterou a vocação dos advogados ao dever de contribuir para o aprimoramento da ordem jurídica. Mas advertiu:
“O grande problema atual do poder é um problema de legitimidade. Não há poder legítimo, sem consentimento do povo. Os advogados brasileiros afirmam que falta legitimidade ao poder institucionalizado em nosso país.”
E no contexto dessa afirmação, que é uma deliberação para a prática social dos advogados, aprovou um conjunto de teses que associa o fecundo princípio da liberdade aos mais variados campos da convivência social, tendo como fonte inspiradora a ideia de “recriar condições” para que a norma jurídica não seja mais um comando de elite, passando a constituir-se instrumento de emanação popular para a formação de uma sociedade democrática.
Na “Carta de Florianópolis”, manifestação das conclusões a que chegou a IX Conferência, os advogados brasileiros exigem “uma ordenação jurídica legítima”, pedem o cultivo do Direito como representatividade compatível “com as exigências da época” e propõem “a criação de novos instrumentos jurídicos, reclamados pela dinâmica dos fatos sociais”.
Numa como na outra Conferência, reafirmam os advogados brasileiros os princípios manifestados com a “Carta de Curitiba” em que o clamor da classe centrou-se na exigência pelo Estado de Direito Democrático, em que a liberdade se apresenta como “síntese dos direitos humanos:
“O Estado democrático é a única ordem que pode proporcionar as condições indispensáveis à existência do verdadeiro Estado de Direito, onde a liberdade – autonomia cede lugar à liberdade – participação que pressupõe princípio pertinentes ao núcleo das decisões políticas e à sua legitimidade institucional. Para isso não basta o voto consentido, pois só ele não constitui a essência da democracia; ao contrário: é a própria democracia que dá conteúdo de participação ao direito de voto. Expressão de ato político e democrático, vontade que este representa, exige processo normativo integrado, desde a organização pluripartidária – representativa das várias correntes de opinião pública – às garantias da livre manifestação do pensamento, incluído o direito de crítica às instituições. As restrições à liberdade somente se tornam legítimas na medida em que visem à preservação do interesse coletivo – respeitado o limite infranqueável da dignidade da pessoa.”
Assiste razão, pois, a Roberto Lyra Filho e a todos que se fazem companheiros associados na construção de uma nova escola jurídica brasileira: estabelecer as bases de um “direito, não como ordem estagnada, mas positivação, em luta, dos princípios libertadores, na totalidade social em movimento”, onde o Direito, “reino da libertação, tenha como limite, apenas, a própria liberdade”.

Conclusões

Por tudo isso, os advogados devem ter clareza da função que a sociedade nos atribui, não apenas enquanto ação individualizada e profissional, mas, sobretudo, enquanto ação coletiva, numa intervenção solidária e organizada, co-participante do contexto de relações complexas das estruturas sociais modernas.
O estágio atual e recente das relações entre a sociedade civil e a sociedade política exige postura de resistência dos cidadãos e dos advogados em defesa das liberdades democráticas, dos direitos e garantias individuais e coletivos e dos interesses difusos da sociedade; a perspectiva de criação de novos instrumentos jurídicos pressupõe a recriação da noção de Justiça e a ampliação do conceito de Direito, que não se reduzem à ordem estabelecida, mas apontam para a indisponibilidade do direito popular de auto-exercício de participação como sujeito determinante, ativo e soberano, da direção de seu próprio destino.
A compreensão dos deveres e a plena concretização dos direitos dos advogados passam pela mediação de sua prática social, de sujeito co-participante do processo de reinstituição contínua da sociedade.
Para nós advogados, as Comissões de Direitos Humanos, criadas como instrumento de atualização dos princípios proclamados nas três últimas Conferências dos advogados brasileiros, representam o momento da mais clara e firme intervenção de nossa Entidade de Classe, no contexto em que se trava a luta conjunta da sociedade civil pela manutenção e ampliação do Estado de Direito Democrático, cuja condição de existência decorre do respeito aos direitos humanos; preservar a atuação das Comissões de Direitos Humanos, assegurando-lhe a independência e o espaço no qual “se estrutura a nossa consciência ativa, indisponível e intransigente”, é “atualizar mais uma vez nosso mandato histórico”, corolário de nossos deveres e de nossos direitos.

Extraído da obra Introdução crítica ao Direito, Série O Direito Achado na Rua - V. 1.

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